A vantagem de ter uma memória deficiente é a de ser surpreendida com uma carta que você escreveu à você mesma, da qual você havia esquecido completamente, além, é claro, de poder encontrar – com uma frequência satisfatória – cédulas de R$10, 20 e até 50 perdidas nos bolsos das minhas calças e jaquetas. Esse é o tipo de prazer que gente funcional jamais conhecerá. Ho ho ho.
Na carta, um pedido: “Não se perca…”. E na última linha, nada de despedida com beijos, abraços ou um até breve, mas uma única palavra: amor. Não me lembro de ter sido tão doce e afável assim comigo alguma outra vez durante essa existência. Costumo ser o oposto: extremamente auto-crítica, rude e insensível.
O que me causa estranheza nem é o fato de eu escrever uma carta pra mim, mas a doçura com que a fiz. Quando me trato bem assim sempre penso mal de mim. Epa! O que você tá querendo em troca disso, hein?
No geral, meu trato comigo mesma é… digamos, um tanto pejorativo. Quando erro, é comum me flagrar utilizando xingamentos inspirados na fauna (anta, burra e similares são os campeões de audiência…), e considerando o “cerumano” errante que sou, às vezes, viro a fauna completa.
Mas não nessa carta, que escrevi no último dia da minha viagem à Itália, dentro de uma daquelas igrejas fenomenais, que mesmo eu, criatura livre de qualquer apelo religioso, me emocionava e arrepiava inteira a cada igreja que visitava. Agora eu lembro que eu estava sentada num banco isolado, dentro do Duomo de Florença (Santa Maria del Fiore) e tinha os olhos marejados de emoção, sentia uma vontade inquieta de ficar, mas, uma vontade que não chegava a arranhar minha determinação de partir. Sentia saudade de véspera daquele país impressionante que eu passei a vida inteira sonhando em conhecer e que eu deixaria nas próximas horas por escolha própria, pois tinha conseguido trabalho e moradia para ficar, caso eu quisesse. Mas tinha também uma saudade atrasada do que – e dos que – deixei no Brasil, e uma certeza tão absoluta de que eu precisava voltar para casa que chegava a me soar insultante, ainda que, por outro lado, fosse tão reconfortante.
Ao fim daquela viagem, após constatar que eu estava voltando pra casa inteira (diferente, mas inteira), ciente das barreiras que superei sozinha, especialmente as psicológicas, abri meu caderno e me escrevi essas palavras:
“Obrigada, querida, por ter vindo, por ter enfrentado o desconhecido, por ter sido capaz, por ter chorado de medo e mesmo assim não ter recuado, por ter se permitido emocionar tantas vezes com tantas miudezas, pela intensidade com que viveu cada nova experiência, por me fazer sentir o orgulho que sinto de você agora. Continue. Não pare. Não se perca. Amor, B.”
Tá. Eu não conquistei o nobel da paz nem ganhei uma medalha de honra por ter feito uma simples viagem, as pessoas fazem isso o tempo todo. Não descobri a cura para o câncer, não curei um paraplégico, não transformei água em vinho, nem sequer salvei a vida de um inseto, mas realizei um sonho antigo, e um sonho é um sonho, não se mede tamanho ou proporção, quando realizado, é de se orgulhar.
E poucos meses depois eu já tinha me esquecido do orgulho que senti de mim, do afago que me fiz e do bem que me causei. Voltei a apontar os meus defeitos e as falhas sem a menor condescendência. Coisa que, provavelmente em algum momento da vida, outras pessoas já fizeram comigo e vice-versa. Bendita memória fraca.
Diante dessa carta de amor próprio, eu percebi que a relação que tenho comigo merece tanto cuidado, atenção e, sobretudo, lapidação quanto qualquer relacionamento que tenho com as pessoas com quem convivo, seja por amor, obrigação, laços sanguíneos ou as três alternativas anteriores.
Eu sei, parece papo de livro de auto-ajuda ruim (e existe algum bom?), mas não se trata só de amor próprio, auto-suficiencia ou condescendência, vai além. Ou não. Vai ver é só papo furado mesmo que eu deveria ter a sós comigo mesma e não aqui. Mas o blog é meu e eu escrevo o que quiser (ui, que malcriada!). Para o seu azar, caro leitor, aqui não existe democracia, mas para sua sorte, a sessão de terapia acabou.
Por hoje, a exemplo da carta que recebi de mim, tratarei-me com carinho e até falarei no diminutivo (sabe, Betinha?). Durante os constantes diálogos que tenho comigo mesma, não me ofenderei (muito) nem me xingarei (merecidas férias para a fauna) e amanhã procurarei fazer o mesmo, e depois, e depois e… hã?
… Maldita memória fraca.