Tinha pouco mais de três anos de idade quando resolvi ir ao banheiro sozinha no meio da noite, absolutamente ciente de que não alcançaria nenhum interruptor de luz no longo trajeto. Levantei, saí do quarto, atravessei o corredor, abri a porta do banheiro, abaixei a calcinha, alcancei o vaso e liberei o fluxo, tudo isso sem me importar com a escuridão. Meu pai – que é quem conta a história – diz que acompanhou todo o processo, acreditando que eu pediria socorro em algum momento. O pedido não ocorreu. O silêncio da noite continuou intacto por alguns minutos, até que meu pai, ciente de que criança e silêncio geralmente não combinam, foi verificar que passava.
Papai conta que eu não estava fazendo merda (nem dentro, nem fora do vaso), mas que sua ida ao banheiro foi providencial.
Reza a lenda que eu era uma menininha bem bonitinha (vamos crer, por mais que o presente trabalhe contra), então imaginem a cena singela de uma “pré-criancinha” educadamente sentada no vaso, cotovelos apoiados nos joelhos, mãos sustentando o rosto e uma carinha de quem está longe, perdida nos próprios pensamentos. A ação começa quando meu pai acende a luz e vê a cena singela, mas percebe que não estávamos sozinhos: uma lacraia gigante serpenteava muito perto dos meus pezinhos que mal tocavam o chão.
É claro que o pobre aracnídeo sucumbiu à fúria do meu pai zeloso. A pequena eu, no entanto, nem se abalou. Nem com a lacraia, nem com o escuro, nem com o susto do raiá que papai gritou antes de acertar o chinelo na criatura malévola. Terminado o embate e o xixi, vesti a roupa e voltei para a cama da mesma forma que saí dela. E desde então meu pai conta essa história para ilustrar o fato de que eu nunca tive medo de nada.
Nunca tive medo de me afogar, por exemplo. Aprendi a nadar sem bóias numa piscina de adultos aos cinco anos e por conta própria. Aos sete quase atravessei uma lagoa (com meu irmão de nove), para desespero do meu pai – que por não saber nadar, só pode ficar gritando lá da areia por nós e pela minha mãe, essa sim, exímia nadadora na modalidade cachorra louca buscando as crias.
Andei de montanha russa tão logo alcancei a altura mínima. Assisti Brinquedo Assassino e peguei um medo sinistro do meu boneco do Fofão (que aliás, saibam vocês, tinha mesmo um punhal de plástico dando sustentação àquela cabeça enorme. Eu abri e vi!). Mas quando Brinquedo Assassino 2 foi lançado, eu já havia superado o medo, assistindo a essa e outras sequências do Chuck.
Meu irmão do meio diversas vezes pediu o “reforço” da caçula aqui, para verificar ruídos irreconhecíveis que ecoavam pela nossa casa tarde da noite. E eu ia com a maior cara de “tô tranquilia, tenho certeza que não é nada”. Ia na frente inclusive, atendendo a um emaranhado raciocínio “logístico” que ele resumia com a frase “vai na frente que eu te protejo” – expressão que até hoje usamos na família para designar cagaço mal disfarçado.
Outro dia encontrei uma foto tão antiga quanto minúscula, daquelas que vinham em um “micro monóculo” (quem lembra?). Com algum esforço se vê na foto, meu irmão, minha tia, eu e um orangotango.

(Isso mesmo, um orangotango)
A foto quase insólita foi tirada numa ida ao circo. Durante o intervalo do espetáculo, um dos astros – o orangotango, claro – passeava pela arquibancada e tirava foto com quem se interessasse em pagar uma pequena fortuna para levar o souvenir. Meu irmão (aquele do vai na frente), não queria tirar foto, ficou nervoso, ameaçou correr quando o artista se aproximou, por fim se acalmou e se posicionou na extremidade oposta, por pouco não ficando fora da foto. Eu, por outro lado, posei ao lado do bichinho simpático, com um sorriso tenso, rosto virado para frente, e olhos (quase não se percebe na foto minúscula, mas eu lembro bem) esbugalhados e entortados na direção do animal (não o meu irmão, o da outra ponta). Porque, né… não custa nada ficar de olho… vai que o bicho resolve me arrancar os tão queridos cachinhos… (se bem que esse risco eu também corria com meu irmão). Não contei pra ninguém, mas só de ver os olhos entortados lembrei que tive medo sim e não foi pouco.
Mais tarde (beeeemmm mais tarde) na minha vida dei outras provas de coragem. Me internei para o parto dos meus filhos com invejável serenidade e passei por um assalto grávida de nove meses com “sangue de barata” suficiente para não entrar em trabalho de parto. Para meu pai (que tem medo de cachorro, elevador, avião, barco, Ponte Rio-Niterói, quaisquer procedimentos médicos AND tempestades) basicamente, eu vivo confirmando o meu próprio mito.
Infelizmente não tenho mais aquela serenidade diante de lacraias e bichos escrotos em geral – quase tive derrame cerebral umas três vezes na vida com aparições de ratos e ataques de uma lagartixa psicopata (nem pergunte). Mas também não me paraliso diante dessas ameaças.
Não me interesso mais por filmes de terror porque aprendi com meu pai que os assuntos sobrenaturais estão na categoria “prefiro respeitar o que eu não entendo ou conheço” (o que provavelmente é um “vai na frente que eu te protejo” só que mais digno, filosófico, elaborado, mas, acima de tudo, um ensinamento válido).
Vale ressaltar que também não conheço nada sobre alienígenas (e pretendo continuar assim), modos-que se alguém fizer qualquer proposta no campo semântico de “vamos até aquele bosque verificar luzes estranhas?” eu me verei obrigada a responder um vamos sim, mas vai na frente que eu te protejo.
Para qualquer criança, o escuro não parece muito convidativo, e pra mim isso não foi diferente. Pouco convidativo, sim, mas também desafiador. Lembro que eu sentia enorme satisfação em enfrentar esse barato que o medo dá. O episódio da lacraia notívaga não foi o único, o do orangotango fotogênico muito menos.
Filhos são um capítulo a parte. Os medos que temos por eles são tão mais imensos quanto poderosos. Não duvide de nada – absolutamente nada! – vindo de uma mãe aflita.
A verdade é que o medo é tão simplesmente um mecanismo de sobrevivência. Sem ele morreríamos cedo, possivelmente colocando nossa espécie em perigo de extinção.
Por outro lado, viver com medo é viver tão pouco, não é mesmo? Não em termos de tempo cronológico, mas em quantidade de experiências.
Meu sogro, que também tem medo de avião e barco (informação irrelevante, mas se entreguei meu próprio pai, não poderia deixar o outro sair ileso) diz que o contrário do medo não é a coragem. (Coragem, acho eu, é ir com medo mesmo, fazer xixi no escuro.) Sogro diz que o contrário do medo é a fé (não necessariamente religiosa).
Esses corôas são mesmo uns sábios, né mesmo?
Tenhamos respeito por tudo o que ignoramos. Tenhamos o medo que vem dentro da coragem. Tenhamos fé de que apesar dos perigos, vai ficar tudo bem.
E que venha o nosso próximo orangotango.
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Clap! Clap! Clap! Muito bom!
Arrasou, ratesca.
Sou sua fã. Sem mais.
Eu acho vcs duas loucas.
Este, está já entrou pro top five das moças. Sempre gosto, mas … vc me fez perder uma boa noite de sono pensando no texto !!! Ótima reflexão. Tbm sou fã.
Uaaaaauu q demais!!!!
(Seu comentário, Daniel… Não a insônia! Isso nunca é legal…)
(Aliás, vc devia poupar a insônia pra “usar” quando pintar o herdeiro!)
PS: eu estava torcendo para ver a SUA foto com o orangotango no final.
Não consegui fazer ficar visível nem escaneando… :-(