Destrua este diário!

Querido Diário,

Desculpe esse contato súbito, inesperado e num horário tão indecente. Acho bastante desagradável ficar séculos sem notícias de uma pessoa e ela reaparecer, de repente, verborrágica, solicitando atenção exclusiva, geralmente num horário profundamente impróprio. Entendo sua irritação, se houver, e compartilho do sentimento, visto-quê me acordaram cedo (no meu único dia de folga). Resolvi, então, dar prosseguimento ao círculo do ódio matutino e você foi o escolhido. Atrapalho?

Aliás, lembra-se de mim? Há vinte anos nos encontrávamos esporadicamente e conversávamos sobre o pouco que acontecia na minha vida e o muito que eu desejava que acontecesse. Você, com sua fechadura que qualquer palito de dentes abria. Eu, sempre munida de palito de dentes, porque vivia perdendo as suas chaves.

Vou entender seu silêncio como sim – você se lembra.

É que imagino que um objeto inanimado com capacidade de ser interlocutor de inúmeros falsos diálogos, será também capaz de ter consciência e memória – mesmo que esse objeto-propriamente-dito tenha se perdido há vários anos. (Nada disso faz o menor sentido, eu sei, mas vai ser assim, porque sim, porque eu quero, e estou dizendo que assim será.)

És agora, Querido Diário (e sempre fostes, na verdade) um tipo de entidade etérea que me acompanhou todos esses anos, apesar da minha total indiferença. Você não só se lembra de mim, como esteve sempre me vigiando em silêncio – esse artifício vai nos poupar um mini-flash-back-mega-plus-gigante que te faria entender como cheguei até aqui; e como esse aqui é diferente do aqui de antes, mesmo sendo geograficamente o mesmo aqui de sempre. Serás também capaz de entender que com todas as mudanças que sucederam eu pareço não ser mais a mesma, mas às vezes parece que sempre serei.

Querido Diário, já que estamos aqui nesse momento íntimo, eu aproveito para confessar que ultimamente tenho me entregado a prazeres pouco edificantes. Isso não é nenhuma novidade, eu sei. Aos catorze eu praticamente só fazia isso. Mas é que para uma adulta semi-responsável, profissional engajada, MÃE, isso tem uma gravidade muito maior, entende? Eu devia estar usando meu escasso tempo livre para ler, ler e ler – o prazer mais edificante que conheço. No entanto, tenho me perdido rolando para cima e para baixo a página do Facebook, curtindo piadinhas infames, discutindo política (ou melhor, esculhambando a política), inundando a timeline alheia com links sobre os candidatos à presidência. A Internet, Querido Diário, é um furacão silencioso que suga vorazmente o nosso tempo – e o olho desse furacão só pode ser o Facebook (se bem que cu, seria mais apropriado). Tenho também usado boa parte desse pouco tempo livre para praticar sexo com meu marido (o que é absolutamente compreensível e irrelevante. Mas na época em que nos falávamos periodicamente não acontecia nada nesse sentido, então quis só ter a satisfação de te contar).

Mas eu te invoquei, aqui hoje, pelos poderes de Greyskull, para uma missão bastante específica.

Querido Diário, não me leve a mal, mas não há no universo conhecido uma escrita mais abobalhada do que esse gênero “querido-diário” (e ele tem se multiplicado no mercado editorial. Parabéns, você deve estar orgulhoso. Eu não estaria, mas… se você está, parabéns pra você, né). Você deve estar se perguntando como eu posso odiar e, ainda assim, estar aqui justamente fazendo uso disso. Você vai entender mais a frente.

Há alguns anos descobri que tenho enorme adoração pela escrita. Você não deve ter percebido vinte anos atrás. Nem eu percebi na época. Não teríamos como perceber, na verdade. É que eu sou da era da informática, mesmo tendo nascido antes de os PC’s existirem (ou pelo menos antes de existir dinheiro na minha casa para que essas máquinas aqui existissem). Escrever no papel sempre foi um exercício bastante doloroso, por isso nossa relação sempre teve tantos hiatos. Odeio escrever na tua carne! Essa quase impossibilidade de fazer e refazer um texto sem o trabalho braçal de apagar e redesenhar as letrinhas todas, uma a uma… Aff… Me faz sentir uma prisioneira quebrando pedras!

(Todos os gênios escritores da História que não precisaram de um editor de textos para tecer suas obras primas reviraram-se em seus túmulos agora. Quase um “nado sincronizado”!) Eu só consigo pensar que esse trabalho era um verdadeiro ato heróico e me sinto grata por eles não terem sido preguiçosos como eu. Aliás, essa minha preguiça tamanha seja a responsável por eu ser uma escritora [tosse para sinalizar incredulidade] ainda mais medíocre do que seria se tivesse um pouco mais de tenacidade.)

Fato é, Diário, que essa defasagem tecnológica me fez perder uns dez anos na descoberta do amor pela escrita (e, convenhamos, se eu tivesse começado a praticar dez anos antes não estaríamos aqui hoje com um texto tão sofrível).

Descobrindo esse amor, cheguei a publicar umas coisinhas por aí, você deve ter acompanhado, nada muito pretensioso. Quatro malucas se atiraram no meu caminho e esse encontro me permitiu ver certa (in)utilidade no meu humor auto-depreciativo (finalmente, depois de tantos anos de experiência!). Me diverti horrores escrevendo com elas sobre… (bem, nunca é fácil explicar a temática… vou tentar ser direta e arrancar esse band-aid dizendo apenas…) sobre as MERDAS que a gente faz na vida quando está apaixonada.

De lá para cá o amadurecimento foi inevitável, por isso passamos a falar do amor de uma forma menos leviana. Foi uma oportunidade de começar a, talvez, quem sabe, me tornar uma escritora de verdade (ilusões, quem não as tem, né mermo?). Até fiquei feliz em ver alguma evolução nas minhas crônicas; tive esperanças de que esse processo continuasse, no entanto, subitamente a fonte secou. É aí que entra você, Q.D.

Veja bem, estou aqui apelando para algo que eu abomino. (Desculpa a sinceridade, mas você aguenta. Aguentou aquela minha fase das verdades absolutas que só um adolescente sabe atirar. Você, minha mãe e alguns poucos bravos amigos. Aproveito a oportunidade para agradecer a paciência)

Está com a sensação de que te fiz reencarnar nessas linhas eletrônicas só para te ofender, né não? Não era isso… Desculpa… Eu quero mesmo é te pedir ajuda. Minha esperança é que esse contato nosso seja um canto da sereia, que atraia de volta as palavras, novas palavras, novos arranjos que andam fugindo de mim enquanto eu me escondo delas. Quem sabe, voltando à forma mais elementar da escrita-burráldica-adolescente-feminina eu consiga voltar a escrever, quiçá, evoluir, sair um pouco da mediocridade.

Espero que você esteja disponível e disposto a ser novamente meu interlocutor inanimado. Tenho certeza de que nossa relação vai melhorar, agora que você não está mais encarnado num bloquinho tipo papel de carta.

E olha… aquele negócio de te abrir com palito de dentes… Não foi legal, hoje percebo.

Não era falta de consideração, sabe… Eu perdia sua chave como perco tudo até hoje (a do carro eu perco e acho todos os dias!). Não era por mal… Mas nunca é, né? E mesmo assim a gente erra e magoa mesmo as pessoas mais queridas.

Não era (reitero) falta de consideração: era descuido meu, falta de atenção… (Se bem que eu aprendi no Mulé Burra que é tudo a mesma bosta… )

Bom, como você pode ver, não me emendei ainda. Mas agora, pelo menos, estou tentando.

Vamos nos falando, ok?

:-*

Ana Márcia Cordeiro

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2 pensamentos sobre “Destrua este diário!

  1. Esse “me acordaram cedo”…não sei do que vc está falando. :-P

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