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O que te impede de amar?

fiona

Já escrevi várias crônicas defendendo que ninguém precisa encontrar um par amoroso para ser feliz. Acredito, de verdade, que cada um de nós pode ser feliz sozinho. Que não podemos atribuir para outra pessoa a responsabilidade da nossa felicidade. Já repeti muitos clichês: é preciso se amar antes de amar alguém, antes só do que mal acompanhado, não devemos nos contentar com migalhas, não vale a pena manter um relacionamento que não faz feliz. E continuo acreditando em todas essas coisas.

Hoje, no entanto, eu gostaria de falar sobre as pessoas que têm dificuldade de manter um relacionamento. Encontram alguém que julgam valer a pena, que faz o coração bater mais forte, com a qual se identificam e gostariam de estar sempre, mas têm dificuldade de criar laços profundos e verdadeiros. Desconhecem a intensidade dos seus sentimentos e não se comprometem com ninguém.

Não existe problema nenhum em não se comprometer com outra pessoa e ter relações casuais. Desde que isso traga felicidade e realização. Mas em meio a tantas pessoas aparentemente felizes com a troca constante de parceiros, existem os que não se entregam propositalmente. Ficam se perguntando o tempo inteiro se deveriam seguir em frente com a paixão ou tentar com outra pessoa.

Há também aquela pessoas que estão sozinhas mesmo quando fazem parte de um casal. Não se conectam com o outro, não deixam de flertar com outras pessoas por medo de estar perdendo uma oportunidade. Por não conhecerem os seus sentimentos, estão constantemente à procura de um amor. Mas dizem que nunca o encontram. Simplesmente porque não conseguem reconhecê-lo.

Não somos todos iguais diante do amor. Uns se entregam mais facilmente do que outros. Uns têm mais facilidade de confiar. Uns começam e recomeçam apesar das desilusões. Mas não há relações satisfatórias para quem tem dificuldade de se entregar. Para quem está com alguém sem saber se deveria estar. Para quem vê uma relação como uma prisão.

Há sempre a possibilidade de viver sozinho. Mas as pessoas que se comprometem deveriam fazê-lo de todo coração. Relacionamentos duradouros precisam estar ancorados em sentimentos sólidos. Dependem de muito amor, confiança, admiração e, sobretudo: desejo de estar com a pessoa que estamos. Naquela hora, naquele instante, naquele momento. E desejar que esse sentimento se repita muitas vezes ainda.

Um casal precisa se sentir parte de um projeto de vida em comum. E isso não é possível para quem não consegue estabelecer vínculos, para quem só pensa no agora, para quem só se preocupa com os seus próprios desejos e pra quem não tem certeza dos próprios sentimentos. Existe muito desencontro nesta vida, mas muitas vezes, quando alguém encontra um amor, desperdiça a oportunidade de vivê-lo.

Nem todo mundo consegue dar a atenção que o amor exige. Mas todos são capazes de aprender. Portanto: o que te impede de amar? Descubra. E permita-se viver uma relação feliz.

linhaassinatura_GISELI

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A menininha

Desde que entrara na rua uma menininha lhe chamou atenção.
Ela era loirinha, pequenininha…sentada na calçada olhando fixamente para um terreno cheio de entulhos. Ela chorava segurando sua boneca. Ele então para e pergunta:

– O que você está fazendo aqui sozinha, mocinha? E por que está chorando?
– Moço, cadê a minha casa?
– Onde é a sua casa?
– É ali. – apontando para o terreno.
– Você deve estar enganada… Ali não tem casa alguma … É só um terreno cheio de entulhos… Como você veio parar aqui?
– Não, moço… É a minha casa… Cadê a minha mãe?
– Qual o seu nome?
– Cadê a minha casa, moço? Cadê a minha mãe? Por que tá tudo vazio? Por que eu não to ouvindo meu cachorro? Eu juro que minha casa é ali, moço…chama a minha mãe…chama, moço…
– Vamos ali… vou te dar um copo d´água, você se acalma e me diz o nome da sua mãe pra gente chamar ela pra vir te buscar…ok?
– Vou ficar aqui esperando minha casa voltar.
– Vou buscar a água para você…

Na volta, a menininha não estava mais ali. Achou estranho… Há tantos anos morava naquela rua, e só prestava atenção naquele velho terreno quando a prefeitura acordava toda vizinhança com seu caminhão de lixo, tentando dar um jeito nos entulhos, onde havia uma placa grande escrita “proibido jogar lixo”.

Os dias se passaram, e era inevitável não lembrar daquela menininha misteriosa chorando em frente àquele terreno abandonado.

Um dia a placa estava no chão, e o terreno todo limpo. Disseram que um supermercado famoso seria construído no local. O homem resolveu entrar para que, depois de alguns anos, pudesse contar aos seus amigos, com aquele ar pomposo, histórias do tempo onde “esse supermercado ainda era só um terreno abandonado.”.

Antes de sair, notou que no grande muro, todo sujo ainda, havia alguns desenhos. Teria sido uma escola infantil, ele pensou. Chegou mais de perto, e pôde ler “papai e mamãe te amam”.

O homem nunca entendeu essa história. Nunca mais soube da menina ou o que havia ali.

O supermercado não foi construído. Aproveitaram o espaço e fizeram um enorme estacionamento rotativo.

linhaDanielle Means .

Leve

Era uma tarde morna de outono e tudo parecia se repetir como um déjà-vu enfadonho diante de seus olhos. O sabor amargo de mais um dia que se passava perdurava na boca seca e pálida. As folhas se desgarravam dos galhos e caíam lentamente, na mesma velocidade e constância que as lágrimas escorriam sobre o rosto paralisado e sem viço.

Ela espia o estabelecimento do outro lado da rua. Das mãos do atendente feliz se faziam dançar sobre a bandeja líquidos, sólidos e fluidos, em cores, corpo e alma. O bailar vívido e pleno nas pontas dos dedos do rapaz fazia espalhar sorrisos pelas mesas do bistrô escondido entre as árvores.

Atravessando a rua, ela pensa: café, chocolate ou uma torta com água? Rapidamente, o garçom puxa a cadeira e a convida a sentar. Ele sugere uma refeição e ela resolve aceitar. Na verdade, nem fome ela tinha. Sentou-se ali tentando sugar um pouco do riso que ouvia de longe. Pede que a bebida venha junto à refeição e se cala.

Esperando o pedido, ela balança as pernas em um movimento ritmado e olha à sua volta com a cabeça baixa, se escondendo atrás dos cabelos longos. Uma eternidade separava o momento em que ela aceitou a ideia do garçom da hora da primeira garfada. Desconfiada, ela sopra o garfo com um creme quente e cheiroso. Olha para os lados novamente, disfarça e enfia tudo na boca de uma só vez. Ainda não sabia se era bom ou ruim, mas era picante. Puxou mais uma garfada. Engoliu.

Com a sutileza e simpatia de uma borboleta, o garçom pede licença e serve uma taça de Sauvignon Blanc na temperatura perfeita. Ela cheira o vinho e faz cara de aprovação com certa esperança. Boca entreaberta, o líquido toca macio na língua e penetra calmamente pela garganta. Ela toma outro gole. E outro. E mais um.

Agora, o sol parecia mais laranja e vivo, aquecendo a pele desde os dedos dos pés, já descalços, passando pelas pernas semicobertas pelo vestido longo, subindo até o colo rubro. O rosto já confessava tudo o que se passava nos seus pensamentos mais proibidos, entregue pelo brilho nos olhos.

O garçom passa ao lado e ri discretamente, assumindo a culpa. Especialista em fazer dançar os fluidos em ritmo sincronizado, ele já sabia que a sessão de terapia tinha terminado. Lendo nos olhos dela o enlace do vinho e da pimenta, sem nada perguntar, ele pousa a conta na mesa. Ela sorri, paga e se levanta, leve e serena. Cúmplices, despedem-se com um aceno de cabeça.

Na calçada, sob a luz clara do dia, ela acha difícil enxergar a tela do celular, mas é fácil identificar o nome e a foto entre as últimas mensagens trocadas. Insinuações, afinidades, provocações, necessidade, vontade. Desejo é quase amor. Desejo é amor com leveza. Ela hesita por apenas alguns segundos e inicia a chamada.

Do outro lado da linha, um coração sorri, maliciosamente.

Leve

linha

Lina Vieira

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Dançando no escuro

Não é como das outras vezes. Eu sei que hoje não haverá volta. Não, eu não sei. Mas eu sinto. Sinto sua ausência, embora você esteja ali. Parado. Na minha frente. A alguns centímetros do meu toque. A quilômetros da minha compreensão.

Você continua com a cabeça baixa. Culpado e vítima sem argumentos. Silêncio. Deve estar ouvindo minha respiração ofegante, já que o ar parece fugir dos meus pulmões. Não quer voltar. Também me abandona, inquieto e desnorteado.

Quero tocá-lo de um modo que não consigo mais. A dor e a angústia, pela primeira vez, se sobrepõem ao desejo. Mas, embora não o toque, ainda posso senti-lo, como senti todas as outras vezes. E, enquanto me recordo da textura e da temperatura da sua pele, percebo que já é saudade. E isso, estranhamente, me conforta.

Eu sei que muitos alarmes falsos já soaram, mas dessa vez o desastre é inevitável. Não podemos nos salvar. E eu sei que você percebe isso também. Condenados ao adeus, nos olhamos mais uma vez nos olhos. Não temos nada a dizer, pois todas as palavras já foram desgastadas: agredindo e perdoando, provocando e acalentando.

O fogo se apagou. E estamos aqui, dançando no escuro, ao som de uma melodia que não faz mais sentido. Nosso pequeno mundo está desabando. E o ruído dos corações partindo faz o silêncio tremer, solidário. Levanto-me e bato a porta atrás de mim. Passo a mão pelo rosto e seco a última lágrima, chamando-a “última” como ordem e súplica.

 

Porta

 

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Lina Vieira

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Naquela “estação”

OUTONO

O domingo no subúrbio ia se despedindo com cara de outono em Nova York. Menos pelo glamour, mais pelas folhas de amendoeiras voando nas ruas. A mesma frieza se estampava na face de Andréa e refletia indiferença no rosto duro de Ricardo. A casa estava minimamente arrumada – o máximo que aquele domingo ressentido pedia. Os dois a arrumaram sem combinar quem faria o quê e sem conversar amenidades no processo. Não havia música também, porque a playlist era sempre motivo para discussões que se encaminhavam como danças e que, não raro, remetiam ao sexo. E não havia sexo.

Um mês e 27 dias – Ricardo que não era brocha nem nada poderia dar a conta até dos segundos daquela abstinência que o agredia mais do que o outono lá fora. As crianças estavam naquela agitação tranquila que a presença dos pais em casa, na sala, assistindo TV e suas peripécias (simultaneamente) lhes proporcionava. Ricardo, incansável, aproveitou o momento comercial de margarina para tentar uma aproximação. Andréa olhou para ele com ternura, apesar da briga silenciosa da noite anterior.

Ela saíra com as amigas, aquelas com quem ele implicava, para um almoço inocente no sábado. Prometeu voltar às 16h30, em tempo para organizar a saída da família para um outro evento com vários amigos, todos casais. Ricardo disse QUATRO E MEIA, assim em caixa alta para que ficasse claro que ERA IMPORTANTE, que não poderiam atrasar. Andréa prometera, como sempre. E atrasou, como nunca. Às 19h quando chegou em casa para buscar Ricardo e as crianças encontrou os filhos surpreendentemente em ótimo estado e o marido absolutamente mudo. E assim fora durante todo o jantar e o caminho de volta.

No sofá, a aproximação de Ricardo foi resposta a uma mão perturbadoramente pousada no alto de sua coxa, mais cedo naquele domingo. De alguma forma, a imagem de Ricardo indiferente, e ainda assim transbordando ódio, fizera Andréa pensar em sexo, mas não o suficiente para vencer o cansaço daquele sábado, muito menos o medo de ser rejeitada como um cachorro de rua na porta do restaurante.

Estavam os dois assistindo TV, cada um em uma ponta do sofá. Ricardo se aproximou de Andréa, puxou suas pernas para o seu colo e deslizou a mão por toda a extensão da coxa, num movimento ascendente. Andréa o olhou e, sorrindo, disse: – Seja difícil, querido.

Ricardo se irritou com aquela instrução. Não saberia ser difícil. Que homem consegue ser difícil depois de um mês e vinte e sete dias?? Aquilo não era uma dica, era um enigma. E Ricardo nunca se interessou sequer por palavras cruzadas.

A instrução de Andréa foi uma tentativa de segurar aquele pensamento que o espetáculo de rancor e silêncio da noite anterior provocara. Queria também se certificar de que iria até o fim dessa vez, pois (ela sim) já havia brochado algumas vezes naquele mês e vinte e sete dias, e isso fizera aumentar mágoas e ressentimentos.

Mas os homens são fáceis. Andréa sabia que só precisaria de uma trepada inspirada para que toda aquela dureza se derretesse. Aquele domingo frio não estava ajudando.

“Seja difícil”. O enigma ecoava na cabeça de Ricardo. “Seja difícil”. Se ele encontrasse a resposta, poderia ter sua amante de volta. “Seja difícil, querido”. Havia uma condescendência naquele sorriso e naquele “querido” que lhe incomodava. Lembrou-se do atraso da noite anterior. Sentiu aquela fúria silenciosa voltar com mais força, pois sabia que nenhum atraso foi culpa sua. Nem o do jantar, nem o do sexo.

– Irresponsável – disse enquanto se levantava indo para o banho tocar sua punheta habitual.

Mais tarde a encontrou no quarto, lendo. Deitou-se a seu lado. Puxou conversa. Andréa explicou o que o enigma significava. Ricardo não entendeu e se irritou por ela não ter sido mais clara.

Aparentemente o Português é um idioma que tem muito em comum com o Venusiano, o que faz todos os homens acreditarem que entendem o que as mulheres dizem, mas por serem de Marte, acabam sempre como brasileiros em território argentino: perdidos em seu próprio “Portunhol”.

À noite se encontraram novamente no sofá. Os filhos estavam no escritório, absortos no computador em meio a jogos e vídeos. O sofá estava morno e a sala fria. Ricardo puxou as pernas de Andréa para seu colo novamente. Olhou desconsoladamente seus pés e beijou-lhe o dedão com uma devoção contida. Suspirou. Andréa viu aquela cena e pensou como não amar aquele homem. Pediu que fizesse de novo. Pediu depois que mordesse-lhe o dedão.

Em pleno outono, sentiu o calor do verão.

O sexo nunca foi tão quente. O outono nunca foi tão frio.

Mas a primavera voltou.

Imagem

linhaAna Márcia Cordeiro

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