Desde que tive filhos nenhuma grande perda humana nos aconteceu e eu rogo a Deus que permaneça assim. As perdas materiais, no entanto, se acumularam por anos e tiveram um dramático ápice com um incêndio que consumiu quase tudo o que tínhamos em casa.
(Não sei se toco demais nesse assunto, mas fiquem tranquilos. Pretendo encerrar esse capítulo hoje).
Sofá, ursinho de pelúcia, fotos, lembranças de viagens, roupa que eu nem tinha usado, livros escolhidos a dedo para ocupar lugar de honra na sala (daria na mesma se os enviasse para um campo de concentração) e até um vibrador rosa aposentado por defeito e guardado por consideração aos seus serviços prestados. Tudo se consumiu nas chamas que meus vizinhos bravamente apagaram (sem ter que topar com o vibrador, que fique claro). Os bombeiros não chegaram a tempo, mas eu me consolo imaginando que estavam salvando vítimas em outra ocorrência, ao invés de objetos inanimados na minha – uma troca justa.
Perder celular te deixa dependente de sua própria memória (e sem backup). Perder guarda-chuva (em dia de chuva, lógico) dá aquela sensação de burrice e impotência. Perder o casaco, dá frio. Bolsa com todos os documentos, dá um trabaaaalho… Dinheiro, dá uma raiva danada. E carro, dá uma aporrinhação sem fim. Mas tudo isso a gente tá mais ou menos avisado que pode acontecer. Cedo ou tarde, todo mundo passa por algum desses inconvenientes.
Já, perder todo o conteúdo de sua casa, tudo aquilo que lhe confere as cores e boa parte dos cheiros que te fazem reconhecê-la como lar; da noite para o dia se ver com a roupa do corpo, duas crianças e marido morando de favor (e amor, graças a Deus) é um pouco mais complicado – para não dizer muito.
Perde-se completamente o referencial. Você se sente no lugar errado e na hora errada o tempo todo. Uma forma quadrada para um buraco redondo. Porque por mais que houvesse amor nos lares que me acolheram, é como se eu ouvisse o canto da sereia me chamando até no rangido estrangeiro de uma porta que não era a minha.
Quando você se vê desabrigado, a sensação é que você PRECISA voltar para casa, mas há vilões invisíveis te impedindo de chegar lá. Como um pesadelo repetitivo com trama intrincada e inúmeras corridas pouco eficazes, em câmera lenta.
Com as crianças, sempre temos maior preocupação nessas horas. Elas precisam de rotina, de estabilidade, então, enquanto estávamos fora, tentávamos a todo custo fazer os dias correrem numa normalidade totalmente artificial. E mesmo percebendo todo esse esforço vão, eles, os pequenos, não se abalaram.
Nossa casa foi reformada graças à família e amigos, e passados aqueles dias escuros de tristeza, fuligem e poeira de obra, nunca mais lamentei de verdade nada do que foi perdido. Mas ainda me emociono com tudo o que ganhei (o que vocês, amigos, família, nos deram, não tem preço).
Mas as crianças… Sempre nos inspiram cuidados.
Seis meses depois do ocorrido, volta e meia meu filho mais velho (Nicolas – cinco anos e meio de muito Rock’n Roll) ainda pede algum brinquedo que não temos mais. Nessas horas, olho para ele com uma expressão que mistura pena e dúvida, a qual ele reconhece e responde com um suspiro.
Ontem busquei ele na escola e ficamos alguns minutos parados no trânsito, em silêncio. Do nada ele começou a cantar músicas do Patati Patatá, e como há muito não vemos o DVD, perguntei se ele tinha visto na escola.
– Não, mãe. Lembrei de quando a gente assistia em casa, antes do incêndio.
Ele entende que sua vida se dividiu em antes e depois do acontecido, mas não deu nenhuma pista de como se sentia a respeito. Seis meses é bastante tempo, considerando o grau de normalidade conquistado em nossas vidas, mas não é tempo suficiente para nenhuma mãe neurótica (e todas as mães em pleno exercício de sua função, são neuróticas. Não intento ser exceção).
Não sabia se ele lembrava constantemente da “antiga casa”, se ansiava por brincar com seus Buzz e Woody, se ficava frustrado em jogar num mini-game depois de ter um daqueles consoles modernosos a seu serviço. Resolvi investigar.
– Você fica triste quando lembra?
– Do DVD do Patati Patatá?
– Das coisas que você não tem mais.
Ele revirou os olhos, parecendo escanear as lentes dos óculos de grau, procurando alguma mancha. Vasculhou o cérebro em busca da informação, a alma em busca do sentimento. Não encontrou nada. Deu de ombros. Respondeu um seguro não com uma cara de quem realmente não dá a mínima e sequer entende por que daria.
Fiquei olhando aquele moleque atrás das lentes grossas, cabelo liso emaranhado, mãos grandes para a idade, unhas cheias de massinha de modelar, e o coração vazio de mágoa ou frustração. Nunca me senti tão agradecida e orgulhosa.
Ele poderia se lamentar, afinal, tínhamos finalmente organizado seu quarto, com uma mesinha para desenho e dever de casa, um quadro branco onde descobrira as letras, uma TV só sua (o irmão ainda não havia descoberto o endereço d’A Casa do Mickey Mouse), o vídeo game que ele amava e as paredes pintadas com sua cor preferida: VERDE! Ele poderia lamentar o fato de ter que “se comportar” tudo de novo para (talvez, se a grana der) voltar a ganhar os mesmos presentes.
Ao invés disso ele aceitou que o que está no passado, não existe. E se não existe, como pode lhe fazer mal?
É disso que eu estava falando, entendem? Estava lá, ilustrado naquela carinha, o que é esse tal talento para ser feliz.
Tem talento para ser feliz quem acha graça de sua própria reação frente a cada pequeno revés cotidiano; quem vai do riso ao choro e de volta ao riso em segundos, achando graça da vertigem que dá. Quem transforma o tédio em poesia, quem sabe ser artista pelo inferno e céu de todo dia; quem briga com o amor de sua vida com uma fúria capaz de destruir o mundo, depois faz pazes e amor com a urgência do fim dele.
Quem elogia, só porque é verdade. Quem critica sem o imperativo da sinceridade, banhando cada palavra em gentileza, como uma mãe que mistura o remédio de gosto ruim com leite condensado.
Tem talento para ser feliz quem mesmo estando de ressaca se admira com uma manhã de céu azul e sol escaldante. Quem vai a praia trocar mágoas por conchinhas; quem se deslumbra com o equilibrismo de uma joaninha na borda fina do copo, sem se angustiar em saber se ele está meio cheio ou meio vazio.
Tem talento para ser feliz quem não vê outra escolha. Nem revirando os olhos, nem revirando a alma.
Felicidade é um talento que meu filho tem.
(E se Deus quiser, o menor vai ter também!)
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PS: Eu sei que, se dermos a devida perspectiva, tudo isso se resume a mimimi “classe média-baixa sofre”. Tantas famílias passam por TRAGÉDIAS de verdade, com perdas humanas e sem ter amigos ou família em condições de ajudar – muito menos um Estado interessado em se ocupar deles – não é mesmo?
Por outro lado, tanta gente passa pela vida sem se deparar com esse tipo de acontecimento. Então acho que a história de cada um traz diferentes aprendizados. Esta sou eu, tentando não deixar a minha passar em branco.
E por falar nisso, alguém aí interessado em enriquecer sua própria história ajudando a dos outros?
Se você sente vontade de ajudar, mas ainda não encontrou o caminho, o site Padrinho nota 10 (com informações sobre instituições e como ajudar) pode ser um começo.
Mas acima de tudo, se você sente vontade de ajudar, AJUDE. Não espere um convite especial. Seja sensível ao que te rodeia.
Todo mundo pode precisar de ajuda algum dia. :)


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