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Coisas de casal

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Chega uma hora em que a paixão dá início ao amor. Em que o ideal romântico é substituído por uma relação verdadeira – aquela em que você se dá conta de que o alvo da sua paixão não é perfeito e aceita conviver com os defeitos. Em que nos arriscamos a compartilhar a vida ao lado de alguém. E, ao lado dessa pessoa, vivemos experiências e construímos vários rituais ao longo dos anos. Coisas de casal.

Aturar perrengues, dormir em cama de solteiro, enfrentar um engarrafamento, fazer serviços domésticos, comer cachorro quente na barraquinha da esquina, por exemplo, são coisas pelas quais todo casal já passou alguma vez. E algumas dessas situações só se tornaram divertidas por estarem sendo compartilhadas com a sua cara metade.

Casais que estão juntos há muitos anos têm a vantagem de se comunicarem por meio de gestos e olhares. Se cutucam quando veem algo engraçado ou fora do comum. Ou têm crise de riso repentinamente, por terem visto a mesma coisa. Mas só comentam sobre ela depois.

Utilizar o outro como desculpa ou pretexto também faz parte da vida de um casal. “Preciso ver com fulano”, “já temos um compromisso”, são frases que vez ou outra livra um casal de um programa chato, uma roubada, um evento social dos quais as pessoas só vão por obrigação.

Pessoas que vivem juntas há muito tempo aprendem muito uma sobre a outra e adotam novos hábitos. Experimentam novos sabores, visitam lugares diferentes, ouvem outros ritmos, leem estilos diversos, discutem sobre temas antes impensáveis. E passam a ter sua própria trilha sonora, o seu restaurante favorito, a comida tradicional dos domingos.

Duas pessoas não se tornam uma só como romantizam alguns. Aliás, um relacionamento feliz precisa ser constituído de duas pessoas inteiras que veem sentido nas coisas mais simples que a vida pode oferecer, como assistir ao pôr do sol, ouvir uma música bonita, ficar o dia todo assistindo filme, comer pipoca ao invés de jantar.

Casais brigam, ficam de cara feia, se irritam. Mas aqueles que estão juntos faz tempo sabem exatamente o porquê. E também escrevem cartas, fazem o prato preferido um do outro, viajam juntos, dizem eu te amo, fazem o outro chorar de rir, inventam apelidos, fantasiam sobre o futuro, fazem planos.

Por tudo isso, para muitas pessoas casais são patéticos. Até a hora que se apaixonam, a paixão dá lugar ao amor e descobrem as delícias e também os dissabores de viverem a dois. Na maior parte do tempo o amor é patético, sim. E justamente por isso é tão bom.linhaassinatura_GISELI

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A rotina amorosa

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A maioria das pessoas sonha em encontrar um grande amor, viver a dois, construir uma família. Essas mesmas pessoas, depois que se apaixonam, casam e dividem o mesmo teto, costumam reclamar da rotina. Certas de que a vida amorosa é semelhante a uma história de amor de cinema, logo se decepcionam com a realidade do dia a dia.

O cotidiano de um casal é feito de um monte de pequenas decisões: o que comer, onde comer, que amigos convidar, qual filme assistir, que eletrodoméstico comprar, que convites aceitar, quando tirar férias, qual o destino da viagem, quem vai ao supermercado. Sem contar a divisão das tarefas e despesas domésticas. Coisas que precisam ser decididas diariamente.

Pode parecer pequeno, pode parecer pouco, pode parecer irrelevante, mas se um casal não consegue chegar a um consenso sobre as pequenas decisões cotidianas, se irritam, brigam, divergem, ficam com raiva e brigam a todo tempo, como construirão planos em comum?

Afinidades aproximam, enquanto as diferenças afastam as pessoas. E a rotina evidencia que o amor não é feito de sexo, flores, presentes, lingerie nova e declarações de amor 24h por dia. E prova que mesmo quando amamos não somos capazes de ler mentes e precisamos nos expressar por meio de palavras. Todos os dias.

Amar uma pessoa é um exercício fascinante, mas viver com ela por muito tempo só é possível quando as semelhanças predominam sobre as diferenças. De temperamento, de caráter, de valores, de projetos de vida. Os opostos podem se atrair, mas para construir uma relação duradoura é preciso muito mais do que atração.

Amor é apego, vontade de aconchego, intimidade, cumplicidade. E rotina. Porque o dia a dia com uma pessoa nos permite conhecê-la, admirá-la, compreendê-la e ter vontade de fazer as coisas juntos. Seja assistir um filme, embarcar em uma viagem, comprar uma casa, casar, ter filhos, construir um patrimônio ou investir em um ideal.

A rotina de um casal, cheia de pequenas decisões diárias, permite também a criação de rituais a dois tão importantes para solidificar a relação, torná-la única e especial. É claro que qualquer casal briga, diverge e se desentende, afinal é constituído de pessoas diferentes, criadas de maneiras distintas. Mas um casal que só faz isso está fadado a uma relação desgastante. Ou pior: a um relacionamento que não proporciona nosso desenvolvimento pessoal.

Conviver diariamente com uma pessoa que foi educada de maneira diferente da sua e teve outras experiências de vida é um aprendizado contínuo e diário. Do café da manhã a hora de dormir. Porque por mais longo que tenha sido o relacionamento antes de dividirem o mesmo teto, é sob ele que irão descobrir um ao outro verdadeiramente.

Não estou dizendo com isso que iremos deixar de ganhar e comprar presentes, de fazer e receber declarações de amor, de convidar e ser convidada para uma programação diferente. Estou tentando dizer que nada disso importa se o seu dia a dia é conturbado e voltar para casa e encontrar a pessoa que você escolheu para viver não é um dos maiores prazeres da sua vida.

A rotina não torna a vida amorosa entediante. Pelo contrário: permite a construção de um relacionamento estimulante, rico, seguro, sólido e cheio de planos em comum. Que vão muito além de quem recolhe o lixo ou faz o jantar. Porque quem consegue decidir sobre o cotidiano sem atritos, ou com poucos, é capaz levar um amor adiante, construir uma história em comum e fazer com que a felicidade vire rotina.

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Leve

Era uma tarde morna de outono e tudo parecia se repetir como um déjà-vu enfadonho diante de seus olhos. O sabor amargo de mais um dia que se passava perdurava na boca seca e pálida. As folhas se desgarravam dos galhos e caíam lentamente, na mesma velocidade e constância que as lágrimas escorriam sobre o rosto paralisado e sem viço.

Ela espia o estabelecimento do outro lado da rua. Das mãos do atendente feliz se faziam dançar sobre a bandeja líquidos, sólidos e fluidos, em cores, corpo e alma. O bailar vívido e pleno nas pontas dos dedos do rapaz fazia espalhar sorrisos pelas mesas do bistrô escondido entre as árvores.

Atravessando a rua, ela pensa: café, chocolate ou uma torta com água? Rapidamente, o garçom puxa a cadeira e a convida a sentar. Ele sugere uma refeição e ela resolve aceitar. Na verdade, nem fome ela tinha. Sentou-se ali tentando sugar um pouco do riso que ouvia de longe. Pede que a bebida venha junto à refeição e se cala.

Esperando o pedido, ela balança as pernas em um movimento ritmado e olha à sua volta com a cabeça baixa, se escondendo atrás dos cabelos longos. Uma eternidade separava o momento em que ela aceitou a ideia do garçom da hora da primeira garfada. Desconfiada, ela sopra o garfo com um creme quente e cheiroso. Olha para os lados novamente, disfarça e enfia tudo na boca de uma só vez. Ainda não sabia se era bom ou ruim, mas era picante. Puxou mais uma garfada. Engoliu.

Com a sutileza e simpatia de uma borboleta, o garçom pede licença e serve uma taça de Sauvignon Blanc na temperatura perfeita. Ela cheira o vinho e faz cara de aprovação com certa esperança. Boca entreaberta, o líquido toca macio na língua e penetra calmamente pela garganta. Ela toma outro gole. E outro. E mais um.

Agora, o sol parecia mais laranja e vivo, aquecendo a pele desde os dedos dos pés, já descalços, passando pelas pernas semicobertas pelo vestido longo, subindo até o colo rubro. O rosto já confessava tudo o que se passava nos seus pensamentos mais proibidos, entregue pelo brilho nos olhos.

O garçom passa ao lado e ri discretamente, assumindo a culpa. Especialista em fazer dançar os fluidos em ritmo sincronizado, ele já sabia que a sessão de terapia tinha terminado. Lendo nos olhos dela o enlace do vinho e da pimenta, sem nada perguntar, ele pousa a conta na mesa. Ela sorri, paga e se levanta, leve e serena. Cúmplices, despedem-se com um aceno de cabeça.

Na calçada, sob a luz clara do dia, ela acha difícil enxergar a tela do celular, mas é fácil identificar o nome e a foto entre as últimas mensagens trocadas. Insinuações, afinidades, provocações, necessidade, vontade. Desejo é quase amor. Desejo é amor com leveza. Ela hesita por apenas alguns segundos e inicia a chamada.

Do outro lado da linha, um coração sorri, maliciosamente.

Leve

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Lina Vieira

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Alianças Invisíveis e Indivisíveis

Alianças Invisíveis

Eu nunca usei aliança, aquela de metal, de prata ou de ouro, nem mesmo de bijuteria. Nunca fiquei noiva, ainda não casei de papel passado e não troquei alianças diante de um padre numa igreja toda decorada com flores. Acho tudo isso lindo, lindo, de verdade. Sou romântica, sim, e não só respeito o ritual da cerimônia do casamento como gosto.

Pretendo, algum dia, vestir um vestido branco, colocar flores no cabelo, casar descalça numa praia ou num jardim bonito e dizer sim para o homem que amo diante de um belo pôr-do-sol. Mas mesmo antes disso acontecer, eu quero falar sobre o que eu aprendi a respeito de alianças.

Quero falar das alianças que não enfeitam os dedos das mãos, das alianças que não são simbólicas, daquelas que ninguém além de você e o seu parceiro enxergam, das alianças invisíveis, indivisíveis e de valor imensurável. Em suma: as alianças mais preciosas que existem.

O que eu aprendi sobre a verdadeira aliança é o que eu vejo se construindo no dia-a-dia, a cada amanhecer preguiçoso de caras amassadas com vontade de ficar grudado na cama até mais tarde, no café que se prepara com a quantidade de açúcar que o outro gosta, na vontade de ir para casa correndo depois de um longo dia de trabalho, na saudade aguda que se sente depois de um dia atarefado, quando mal dá tempo de falar ao telefone, no alívio de repousar naquele colo, mas só serve se for aquele, o dele, o dela.

Nos momentos únicos, nas coisas exclusivas, nas histórias que só pertencem aos dois, nos segredos da intimidade, na sutileza dos detalhes. As alianças estão ali. Na forma como só ele sabe fazer para acalmá-la, na fórmula mágica que só ela conhece de como desarmá-lo. A magia está na rotina. Eu jamais pensei que diria isso algum dia, mas o que eu descobri sobre o amor que se constrói diariamente é que ele está mesmo na rotina. Não naquela rotina de acordar, preparar o café, desejar bom dia, sair para trabalhar, voltar, desejar boa noite, dormir, acordar e fazer tudo de novo.

Falo da rotina do cuidado, do carinho, da entrega, da generosidade, da vontade de ver o outro bem, do desejo de vê-lo se realizando, de procurar meios de fazer o seu dia mais feliz. Mas isso só funciona, é claro, quando é uma via de mão dupla. Qualquer um, com o tempo, cansa dessas boas intenções quando se está sozinho com elas.

É possível enxergar melhor a força dessa aliança quando o momento é ruim ou a fase é difícil. É na hora que as coisas não vão bem que aquela rotina do cuidado e da entrega ganha um peso maior. O amor se fortalece nos momentos bons para tornar as alianças de aço nas horas difíceis.

Um casal que decide juntar suas escovas de dentes, independente de existir uma troca de alianças de compromisso ou não, deve ser, acima de tudo, aliado. Ser aliado é muito mais importante do que ser casado.

Os aliados, esses sim, são os eternos parceiros, amigos e amantes. Esses, possivelmente, serão aqueles que farão valer a frase: “E foram felizes para sempre…”

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