Arquivo da tag: luto

“Eu não tenho mais mãe”

This is Us é uma série famosa e conhecida por arrancar lágrimas dos seus espectadores por meio das histórias familiares de seus personagens. Inclusive, eu comecei a assistir por isso. Amo casos de família. Amo drama. Amo cenas emocionantes. Amo chorar vendo filmes e séries. Para quem ainda não sabe, sou canceriana.

Demorei a chorar com essa série. Vi a primeira temporada arrastada e quase desisti, só a partir da segunda comecei a ver, ou melhor sentir, a emoção de que tanto falavam. A história é boa. Família, sabemos, sempre rendem traumas, histórias de superação, vitória, felicidade, tragédia. Na vida de todo mundo. Por isso todo mundo acaba se identificando de alguma maneira.

Mas, ontem, assistindo a sexta temporada, eu chorei de verdade. Tanto que não consegui continuar. Precisei parar. Para quem ainda não assistiu adianto que contém spoiler- sei que a temporada nem é nova, mas vai que você ainda não viu? Tem um episódio em que o Jack recebe a notícia de que sua mãe morreu. É esse o spoiler, porque os detalhes são irrelevantes para o que quero escrever.

Depois do velório e do enterro, em casa e ao lado da sua família, o personagem começa a chorar e diz para esposa “eu não tenho mais mãe”. Parece que, naquele momento, a sua ficha caiu, ele percebeu que a ausência física de uma mãe que vive longe em nada se compara a ausência de uma mãe que não existe mais.

E, ao escutar a frase na série, eu revivi a dor que senti, em dezembro de 2018, ao me dar conta de que eu não tenho mais mãe. Orfã de mãe. Desemparada da figura materna. Sem nunca mais poder escutar sua voz, ter a sua presença, fazer uma visita, enviar uma mensagem. Há quatro anos eu não tenho mais mãe e, dependendo do motivo ou do momento, ainda não consigo dizer isso sem chorar.

Hoje não sinto o desconforto ou incômodo que já senti quando alguém pergunta sobre minha mãe e digo que ela já faleceu. É isso. Ela morreu, faleceu, não está entre nós, não tenho mãe. Quem pergunta é que fica com aquela expressão desconfortável de quem não sabe o que falar. Alguns esboçam um “sinto muito”.

Dizer para alguém que não tenho mãe não é dolorido hoje. Mas ainda é dolorido não ter mais mãe. Não ter mãe é mais do que perder alguém que a gente ama muito, o que por si só, já é uma dor inexplicável. Perder a mãe é perder um pouco de si mesmo. De suas histórias, de suas memórias, de suas crenças e rituais.

Por diversas vezes, nestes quatro anos, eu queria relembrar alguma coisa, mas ninguém sabia a não ser ela. E eu não tinha onde perguntar ou a quem procurar. Procuro lembrar as histórias dela e usar as expressões que ela usava, mas confesso que às vezes tenho medo de que minha memória falhe e eu deixe de conhecê-la tal como ela era. E o que são os mortos se não o que lembramos e perpetuamos deles?

“Eu não tenho mãe” é muito mais do que reconhecer que uma pessoa morreu. É se dar conta de que uma parte sua, a partir daquele momento, agora caminhará sozinha, por mais que você tenha muitas pessoas nesta vida. Eu me alegro por ter chamado de mãe uma das mulheres mais amorosas e especiais que conheci nesta vida e isso é o mais perto que posso chegar dela, porque, hoje, eu não tenho mais mãe. E ainda estou encontrando quem sou sem essa parte de mim.

Dia 27 de janeiro era o dia do aniversário da minha mãe. Não foi um dia triste, mas, claro, eu lembrei dela. E, hoje, ao me deparar com este texto no rascunho, que eu já tinha esquecido de ter escrito, resolvi publicá-lo.

Texto publicado por Giseli Rodrigues em seu blog pessoal.

Etiquetado , , , , ,

Quanto tempo ainda nos resta?

A única certeza que temos é de que iremos morrer algum dia. Não sabemos como, nem quando, nem onde. A cada novo amanhecer não sabemos se estamos vivendo mais um dia ou menos um dia – provavelmente os dois, dependendo da perspectiva. Pouco falamos sobre morte, não gostamos de falar sobre ela e não planejamos como vai ser a vida quando não estivermos mais aqui.

A morte é uma tragédia. Só quem já viveu a perda de um ente querido conhece essa dor. Não encontro palavras para descrever, porque simplesmente não há. Um novo mundo passa a existir a partir da morte de alguém que faz parte da nossa vida. Rituais que eram importantes passam a não ter significado, coisas simples e cotidianas povoam nossa memória, a saudade surge em momentos inimagináveis.

Pessoas que fazem parte das nossas vidas, que ajudaram a construir nossa história, não são substituíveis. Elas vivem para sempre dentro de nós. Há algo delas em nós. Por mais que a pessoa não exista fisicamente, ela continua existindo. E continuará existindo enquanto fizer parte das nossas lembranças, memórias, experiências. Continuará enquanto estivermos vivos.

Por outro lado, falar de morte é falar da vida. Se não há para onde fugir, de que maneira queremos ser lembrados quando não estivermos aqui? O que queremos deixar para quem amamos? Que tipo de relações desejamos construir e manter? Ao lado de quais pessoas queremos viver momentos e construir lembranças? O que desejamos da vida?

Hoje passei a manhã vendo notícias do temporal que aconteceu em Petrópolis, no dia 15 de fevereiro de 2022, e isso mexeu muito comigo. Não foi a primeira tragédia e, infelizmente, não será a última. Famílias destruídas, 58 mortos até o momento em que vi a reportagem e um número desconhecido de desaparecidos.

Pessoas voltando do trabalho, da escola, assistindo televisão em casa, fazendo uma atividade doméstica ou qualquer outra coisa cotidiana numa terça-feira comum e, de repente, ela é atingida por uma forte chuva e não existe mais. Nenhum de nós imagina uma morte assim, nenhum de nós quer passar por uma tragédia, mas nenhum de nós sabe quando chegará o fim. E, inevitavelmente, ele chegará.

Como já escreveu Bukowski, “todos morrem um dia, é simples matemática. Nada de novo. A espera é que é um problema.” De que maneira estamos esperando? O que estamos fazendo durante o intervalo? Se morrêssemos hoje, teríamos orgulho do que construímos? De que maneira seríamos lembrados?

Eu sei que diante da necessidade de lutar pela vida, sobretudo num país como o nosso, muitas pessoas não conseguem viver. Mas se você é uma das pessoas que pode, encontre uma brecha entre os compromissos, responsabilidades e obrigações para fazer coisas que te deem prazer, estar com pessoas que admira, criar momentos com quem você ama. Elogie as pessoas, diga eu te amo, compartilhe o que sabe.

Ninguém sabe quanto tempo ainda resta, mas no dia em que você não estiver mais aqui (e eu desejo que este dia demore bastante a chegar) não é dos momentos especiais que terão saudade, mas dos momentos simples e cotidianos que um dia compartilharam. Busque a sua felicidade. É sendo feliz que você fará feliz quem te ama. E aqueles que te amam lembrarão de você eternamente.

assinatura_GISELI

Etiquetado , , , , ,

O lugar do outro

“Ser empático é ver o mundo com os olhos do outro e não ver o nosso mundo refletido nos olhos dele”.

Carl Rogers

Na semana passada meu tio faleceu, vítima de covid. A morte é sempre injusta, né? Num dia a pessoa está realizando suas tarefas cotidianas, tomando café, almoçando com a família, pagando boletos, e no outro não existe mais. Ele tinha 76 anos e era cheio de vida. E, o que ou depois de sua morte? “Já era idoso”, “devia ter alguma doença”.

A ignorância é muita. Por mais que ele – ou qualquer outra pessoa – tivesse comorbidades, foi o covid, e não outra doença, que o levou a morte. Mas muita gente não se importa, como se a vida de quem é idoso não valesse nada, como se alguém que sofre com doença crônica não mereça viver. E lá se vão milhares de mortes no Brasil e as pessoas agindo como se a pandemia tivesse acabado.

Olhando o comportamento das pessoas vemos que falta muita coisa: cidadania, respeito ao próximo, senso de coletividade, mas, sobretudo, empatia. Não se diz para alguém que acabou de perder um ente querido que ele já era velho. Ou que deveria ter outra doença.

Esta semana um grupo de religiosos se reuniram na porta de um hospital, não para rezar pelos enfermos ou oferecer palavras de consolo. Mas para chamar assassina uma menina de dez anos, vítima de estupro. Por que ir atrás de uma criança e não de seu estuprador? Por que a sociedade criminaliza mais o aborto do que o estupro? A resposta já sabemos: a vida das mulheres não vale nada e nossos corpos não nos pertencem.

Eu sei que o endereço mais difícil do mundo é o lugar do outro. Mas precisamos exercitar todos os dias para nos tornamos mais humanos. Será que alguma dessas pessoas que foram agredir uma criança de dez anos pensou no horror que ela já passou? Abusada há quatro anos por um homem que deveria lhe oferecer amor e cuidados. Grávida aos dez. Não importa se você é contra ou a favor do aborto. Não é sobre você. É sobre o outro. Sobre uma criança.

Falta amor. Falta empatia. Falta respeito. Falta tanta coisa neste mundo que é fácil perder a esperança na humanidade. Mas precisamos continuar. Precisamos seguir. Precisamos fazer nossa parte. Só o amor e a empatia nos farão manter distância de grupos que só falam em deus, mas vivem de crucificar os outros. Que pregam amor e só espalham ódio. Que dizem lutar pela vida e só agem com violência. Pessoas que não conseguem enxergar além de si mesmas.

linhaassinatura_GISELI

Etiquetado , , , , , , , , , , ,

A crueldade das datas comemorativas

Todas as datas comemorativas sempre foram dias muito felizes para mim. Por mais que a maioria diga que não passam de datas comercias, que o intuito é vender produtos e que o verdadeiro sentido de cada uma fique perdido, eu sempre valorizei cada uma.

Sempre interpretei como uma possibilidade de estar com quem amo e dar presentes. Se não for em datas comemorativas fazemos isso quando? Envolvidos na rotina, cheios de compromissos, com dias cada vez mais atribulados, sempre deixamos para depois o telefonema, o encontro, o almoço em família, a compra de um presente.

As datas religiosas, embora não tenham sentido para mim, tinham para minha mãe, sempre muito católica. E eram motivo de festa, de doces, de comemorações, de reuniões, de encontros, de bolos maravilhosos. Eram verdadeiros eventos que a mobilizavam e contagiavam a todos.

Hoje todas as datas que eu gostava, incluindo a Páscoa, minha preferida, não fazem sentido algum. Consigo perceber o quanto essas festividades são ingratas e cruéis com quem, como eu, perdeu alguém que muito amava e que comemorava cada uma delas. Ou com quem, por alguma razão, nunca teve a presença dos pais ou nunca pôde festejar essas datas.

Não adianta falar que preciso acreditar em deus. Não é sobre isso que estou escrevendo. É sobre convenção social. É sobre hábitos. É sobre costume. Que, independente da crença de cada um, interfere, de alguma maneira, na vida de todos nós. Aproveito o momento para indicar a leitura do livro “Religião para ateus”, que pode ser tema para outra crônica.

O calendário ocidental está aí. Os feriados estão aí. As festividades estão aí. Quer queira, quer não. A sua dor não impede o curso da vida. Seus traumas não paralisam a existência das coisas. Seu luto não evita que os demais estejam alegres. E, por mais que um dia você se acostume, as mesmas datas têm um novo significado. Ou nenhum. E, ainda que não façam sentido, não tem como ficar indiferente a elas.

As pessoas vão sair da missa com ramos, lojas vão estar abarrotadas de ovos de páscoa, as pessoas vão falar do dia das mães. Não há como fugir, como evitar, como se esconder, como impedir. Só se acostumar. E tentar criar outros rituais.

Mas, quem ainda não entende o que estou dizendo (e espero que não entenda nunca!) eu peço: sejam empáticos. Nem todos estão tão alegres quanto você. Nem todos valorizam essas datas. Nem todos estão animados. Cada pessoa é um mundo desconhecido, passa por situações diferentes e pode não ver essas datas com o mesmo entusiasmo. E tem lá suas razões.

Não critique. Não julgue. Não faça sermão. Aproveite todas as datas como julgar mais conveniente para você. E deixe que os outros façam o mesmo, a seu modo.

Feliz Páscoa. E feliz todas as datas.

linhaassinatura_GISELI

 

Etiquetado , , , , , , , , , , ,

A vida sem mãe

Que todos nós iremos morrer algum dia todos nós sabemos. O que não sabemos, até que alguém que amamos muito nos deixe, é que a morte não morre nunca. Fica ali, latejando, todos os dias. Pelo menos tem sido assim para mim, desde o dia 29 de dezembro de 2018, quando minha mãe morreu.

Vivi, naquele dia, a maior dor que senti até hoje. E, passado algum tempo, eu ainda não sei descrever o desespero que é ver um corpo inerte e sem vida quando no dia anterior ele abrigava uma alma cheia de alegria. Eu sei que a maioria dos filhos exaltam as mães e dizem que as suas são as melhores do mundo, mas a minha era também minha amiga. Confidente. Terapeuta. Médica. Anjo da guarda. Não havia um dia em que a gente não se falasse.

Minha mãe não existe mais. Eu sei disso. Algumas vezes, no entanto, ainda me pego dando print em um bolo para enviar para ela, pensando em ligar para falar uma novidade, escrevendo uma mensagem para perguntar alguma coisa. Afinal, a minha mãe era de um tempo em que as mães sabiam de tudo e tinham todas as respostas para os filhos. Ainda falo que vou na casa da minha mãe e, na maioria das vezes, me refiro a ela no presente.

Com a morte dela morreu também toda a vida que eu conhecia até então. Todos os rituais. Toda a rotina. Toda a forma de me relacionar comigo mesma. Não importa a idade que você tenha, ao perder a mãe você vai precisar reaprender a viver. Tudo de novo. Só que dessa vez vai se virar sozinho.

Cada data comemorativa. Cada ritual. Cada dia da sua rotina. Tudo será novo. E precisará ganhar um outro significado depois de uma experiência tão dolorosa quanto a morte. Sem contar que todas as vezes que alguém falar a palavra mãe ou família, tão comuns e cotidianas, você irá sentir de uma maneira diferente.

O mundo está igual, a vida continua, as pessoas seguem suas rotinas. E, por mais que você saiba que a vida tem que continuar e esteja fazendo isso, você nem sabe como está fazendo. A morte escancara a nossa fragilidade e mostra, da maneira mais cruel, que não temos controle de nada. Não tem como fazer o tempo voltar. Não tem como ressuscitar quem amamos. Não tem nada que você possa fazer para sair dessa realidade. Acabou.

Eu não sei se existe deus, céu, inferno ou paraíso e, com a morte da minha mãe, eu me importo ainda menos com isso. Se vou encontrar com ela depois da morte, se ela olha por mim, se está num lugar melhor ou pior, eu não tenho como saber. O que sei é que ela está em mim. Cada dia mais viva do que nunca. E lembro dela todos os dias.

Egoísta, eu gostaria que minha mãe vivesse muito mais. Ela não seria dessas velhinhas ranzinzas, de mal com a vida e que vivem julgando as pessoas, como muitas que conhecemos. Seria dessas que contam histórias, ensinam os mais jovens, bebem uma cerveja no fim de semana, trocam receitas e lamentam não ter nascido nos nossos dias, quando as mulheres têm mais liberdade. Mas ela se foi.

Ela era a pessoa mais compreensiva e tolerante que já conheci. Uma mulher forte que, embora tenha tido uma vida difícil, acreditava nas pessoas, encontrava alegria em viver, distribuía amor e ajudava a todos que podia. Foi a melhor mãe que eu poderia ter. E a mãe que muitas pessoas precisavam ter tido para aprender a ser gente.

Minha mãe morreu, mas o amor que sinto por ela permanece vivo. Quando a dor se transformar apenas em saudade eu espero ter a força que ela tinha para espalhar amor por aí. E ajudar a transformar o mundo num lugar menos insano, violento e odioso.

Em meio a tanta tristeza eu reconheço o privilégio ter tido uma mãe como ela. linhaassinatura_GISELI

 

Etiquetado , , , , , , , , ,